segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Violência sexual era usada como arma de poder por Gaddafi

Mesmo para alguém familiarizado com o doentio repertório de abusos e atrocidades cometidos pelo ditador líbio Muammar Gaddafi em seus 42 anos no poder, o novo livro da jornalista francesa Annick Cojean é um soco no estômago.
Em "O Harém de Kadafi", que está sendo lançado no Brasil, Cojean dá voz a Soraya, que conheceu por acaso nas ruas de Trípoli pouco após a morte do ditador, em outubro de 2011.
Escolhida numa visita de Gaddafi a sua escola quando tinha 15 anos, Soraya foi mantida até os 20 nos porões da fortaleza de Bab al Azizia, em Trípoli, sofrendo estupros diários e todo tipo de violência, para satisfazer o insaciável apetite sexual do ditador.
O detalhado e arrepiante relato de Soraya abriu para a repórter francesa o mundo oculto de perversões que vitimou centenas, talvez milhares de outras mulheres.
Mas também revelou o segredo mais escondido do regime: na Líbia de Gaddafi, a violência sexual era uma arma de poder, a serviço de um governo baseado no estupro e na coação.
Embalado por álcool e drogas, Gaddafi preferia jovens virgens em suas orgias seguidas de cerimônias de magia negra, mas o sexo também era usado para humilhar desafetos e mantê-los sob seu controle.
Gostava de atrair filhas e mulheres de homens poderosos, e chegou a forçar ministros e outras personalidades do regime a fazer sexo com ele, além de seduzir com joias e dinheiro mulheres de líderes africanos.
Em entrevista à Folha por telefone, de Paris, a repórter do diário "Le Monde" reviveu as histórias de horror das mulheres escravizadas por Gaddafi, refletiu sobre o silêncio coletivo que o manteve impune, e confessou: "Foi a reportagem mais dolorosa que já fiz".
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Folha - Seu livro descreve um verdadeiro sistema a serviço das perversões sexuais de Gaddafi. Como ele funcionava?
Annick Cojean - Era muito organizado, mas com bastante espaço para improvisação. Muitas pessoas do regime conheciam o gosto de Gaddafi em mulheres e sexo e sua atitude bárbara em relação a elas.
Tina Merandon/Divulgação
A jornalista Annick Cojean
A jornalista Annick Cojean
Ele era o chefe e podia exigir o que quisesse. Não faltava gente disposta a satisfazer os desejos dele em troca de retribuições. Gaddafi tinha muitos cúmplices que mantiveram esse sistema funcionando, trazendo mulheres para ele. A maioria muito jovens, de 14, 15 e 16 anos.
Gaddafi aproveitava qualquer situação para conhecer meninas. Visitava escolas, universidades, ia a festas de casamento, festas de tribos, encontros da guarda revolucionária. Ele criou um sistema em que elas eram convidadas para Bab al Azizia [a fortaleza em que ele vivia]. Meninas eram chamadas se tivessem algum problema, ou se algum membro de sua família tivesse problemas.
Escrevo no livro sobre uma menina que tinha sido expulsa da universidade e uma mulher disse a ela: "Posso arranjar um encontro com o Guia". Outras tinham irmãos presos por alguma razão idiota e iam procurar Gaddafi em busca de ajuda. Havia todo tipo de desculpa para levar meninas a ele.
E há exemplos como o de Soraya. Ele visitou sua escola, colocou a mão sobre a cabeça da menina. Esse era o sinal para seus guarda-costas de que ele a queria.
Gaddafi também costumava ver álbuns e filmes de casamento e de festas particulares para escolher meninas. Ele dedicava uma grande parte de seu tempo a isso. A maioria das meninas era virgem e entrava em estado de choque quando ele tentava fazer sexo com elas.
Aquelas que colaboravam eram premiadas, geralmente com dinheiro e presentes. Mas a maioria era estuprada e ficava profundamente traumatizada. Algumas eram levadas por uma semana, outras por meses.
No caso de Soraya, durou cinco anos. No meu livro há o caso de uma delas, Libya, que foi levada quando era muito jovem, com 17 ou 18 anos, nos anos 70, e só saiu pouco antes da revolução [em 2011]. Mais de 30 anos.
Gaddafi se entediava com as meninas e depois de um tempo e elas tinham liberdade para sair e voltar de Bab al Azizia. A questão é que a partir do momento em que eram levadas não havia futuro para elas.
Tinham perdido a virgindade e na maior parte das vezes as famílias não as aceitavam de volta. Foi um choque para mim. Elas não podiam contar o que acontecera com elas, não tinham a quem denunciar e nenhuma esperança de justiça. Ficavam completamente perdidas.
Algumas provavelmente poderiam ter saído de Bab al Azizia, mas não tinham para onde ir para recomeçar a vida. Por isso muitas voltavam a Bab al Azizia, onde ao menos tinham um quarto e um prato de comida.
Era um sistema insano, uma armadilha, porque a única alternativa era continuar fazendo parte da gangue de Gaddafi. E hoje isso é um grande problema para elas. Foi esse o motivo de Soraya ter falado comigo logo no primeiro dia em que nos conhecemos.
Ela queria falar. Sua juventude foi roubada e mesmo depois de sofrer toda a brutalidade de Gaddafi, ela se sentia culpada. Com Soraya eu entendi como funcionava o sistema de escravas sexuais de Gaddafi e como era a vida em Bab al Azizia.
Mas o que eu descobri depois, em minha investigação, é que, além da perversão e do louco apetite sexual de Gaddafi, havia algo mais. Sexo e estupro era seu modo de governar a Líbia. Isso foi chocante para mim.
Eu sabia que, durante a guerra civil, o estupro havia sido usado como arma, com o incentivo e o planejamento de Gaddafi. Eu encontrei alguns estupradores e comprovei isso. Porém muito antes da guerra, e isso era totalmente secreto, o estupro e sexo eram usados como forma de governar, de dominar as pessoas.
Supõe-se que Gaddafi não era o único a usar violência sexual para ter controle.
Claro. Ele corrompeu a sociedade. Era uma corrupção moral e sexual. Os primos de Gaddafi e a alta cúpula do governo e do Exército tinham esse tipo de comportamento, mas sem o poder dele.
O sexo era usado por Gaddafi para punir e para premiar. Podia ser um líder tribal ou um ministro. Quando ele queria humilhar alguém a melhor forma era fazendo sexo com sua mulher ou filha, às vezes ambas. Podia levar muito tempo.
Ele mandava alguém espionar a menina na universidade, por exemplo, para colher informações sobre sua rotina, seus gostos, e no momento certo levava para Bab al Azizia, onde as estuprava ou fazia sexo em troca de presentes. Ele também fez sexo com ministros, com o objetivo de mantê-los sob seu domínio.
O mais incrível é que o silêncio em torno do assunto foi preservado. O tema seria sensível em qualquer sociedade, mas especialmente na Líbia, um país extremamente conservador e onde as pessoas não podiam contar o que passaram a um colega ou mesmo à esposa.
É simplesmente inacreditável. O silêncio era o maior aliado de Gaddafi. Por causa desse tabu, ele podia fazer o que queria. Ministros que fizeram sexo com ele obviamente negam tudo.
Gaddafi se via como o "rei dos reis da África". Ele nunca poderia alcançar isso, mas para dominar os presidentes e reis da África, ele tentava chegar as suas mulheres e filhas.
Ele usava as conferências de líderes que eram realizadas na Líbia, para caçar primeiras-damas em almoços ou jantares. Para seduzi-las, ele fortunas em dinheiro e joias. Num desses eventos, ele desviou um dos carros do comboio às duas horas da manhã para levar uma das primeiras-damas em Bab al Azizia. Imagine o constrangimento do protocolo.
Isso acontecia com o consentimento dos maridos?
Não que eu saiba. Ouvi de um alto integrante do governo francês que o sexo entrava nas negociações de grandes contratos com líderes africanos, mas não tenho prova. Pelo que sei os maridos nada sabiam.
Uma integrante do protocolo líbio me contou de um líder africano que ficou esperando com toda a comitiva no aeroporto, pronto para partir, e a primeira-dama não aparecia. E o marido foi ficando nervoso. Ela havia sido chamada por Gaddafi e só apareceu no aeroporto três horas depois da hora da partida.
As meninas que ele atraía tinham algo em comum? Classe social, aparência física, origem, idade?
Não. Havia meninas pobres e ricas. Ele procurava meninas bonitas, mas precisava de duas por dia e podiam ser de qualquer lugar. Ele preferia as virgens. Isso tinha a ver com cerimônias de magia negra, em que o sangue de virgens era usado.
Mabruka Sharif, uma das mulheres mais próximas de Gaddafi, e de fato a chefe do harém, que eles chamavam de "serviço especial", era adepta de magia negra. Ela ia a países africanos para convidar feiticeiros à Líbia.
No momento em que essas meninas encontravam Mabruka, suas vidas estavam destruídas. Aliás, Mabruka está na Líbia, ela negociou uma espécie de prisão domiciliar com os rebeldes. Ela pôde voltar a sua cidade natal e em troca teria fornecido informações preciosas sobre Gaddafi.
Como a sra. convenceu essas meninas a falar?
O meu objetivo era ajudar essas meninas a contar a sua história e tive a ajuda de líbios para convencê-las. É tão perigoso, para elas pode ser uma questão de vida ou morte. Com a Soraya, surpreendentemente, não foi complicado. Encontrei-a por acaso, poucos dias após a morte de Gaddafi, e ela estava com raiva e queria falar, queria contar sua história e queria que ela se tornasse conhecida.
Soraya tinha muita raiva de Gaddafi, estava muito amarga e triste. Ela queria ficar na Líbia, mas estava percebendo que, mesmo após a morte dele, seria difícil ter um futuro no país. E isso era extremamente injusto.
O que ela me deu foi um documento, que vai ser importante para o Tribunal Penal Internacional e também para as novas novas autoridades líbias. Já as outras estavam com tanto medo de falar.
Uma delas me disse: "Se você colocar alguma coisa na sua entrevista que ajude o meu marido e meus filhos algum dia de entender o que eu passei, eu concordo". Mas é muito difícil. É realmente uma questão de vida ou morte.
Algumas são casadas. Uma delas casou com um primo. Passou alguns meses com Gaddafi e, claro, nunca contou nada a ninguém. Outra está completamente perdida, não tem relação com a família.
Uma das meninas aceitou falar comigo e sua história era inacreditável. Ela foi usada por Gaddafi para seduzir pessoas a sua volta, como os principais generais e ministros, de forma sistemática. Sua vida está em perigo, é óbvio, porque ela sabe muita coisa. Quando a encontrei, ela tinha sido sequestrada um dia antes e estuprada por alguns gaddafistas.
Se souberem da história delas, suas vidas podem acabar. Elas são ameaçadas pelo risco de sofrer o chamado "crime de honra" [justiçamento geralmente, feito pela própria família, para punir uma mulher que cometeu atos considerados imorais e desonrosos], ainda comum na Líbia, pelos gaddafistas, pelos salafistas [muçulmanos ultraconservadores] e também por alguns revolucionários, que a consideram prostitutas de Gaddafi que usufruíram do antigo regime.
Por isso eu quis escrever o livro. O silêncio ajudou Gaddafi por tanto tempo e agora isso tem que acabar. Se a Líbia quer ter um futuro, precisa encarar seu passado. Não apenas reconhecer o sofrimento dos prisioneiros políticos e promover os homens que lutaram e morreram lutando na revolução. E para as mulheres, nada. Para a situação das mulheres, a revolução não fez nada.
Centenas de mulheres que foram levadas por Gaddafi e mantidas um tempo. Suas vidas foram completamente destruídas depois disso. Acho que há milhares de mulheres que em algum momento foram violentadas por Gaddafi e sofrem por isso até hoje.
Milhares?
Acho que sim. É impossível para qualquer um saber o número, mas ele ficou 42 anos no poder e isso teve início logo que ele assumiu o poder. No início não era tão sistemático, mas ele fez isso desde os primeiros dias.
Sua relação com mulheres, e também homens, foi terrível desde o começo. Não sou uma especialista em Gaddafi, não posso explicar do ponto psicológico. Eu sei que desde o começo ele levava mulheres soldados para Bab al Azizia e as violentava.
Uma das excentricidades mais famosas do ditador era seu corpo de guarda-costas, todo formado de mulheres. As "amazonas de Gaddafi" então eram uma mentira? Eram todas suas escravas sexuais?
Muitas delas eram. Algumas se formaram na academia militar, outras na escola de polícia. A maioria era escrava sexual. Exatamente como Soraya, que dois dias depois de encontrar Gaddafi foi obrigada a vestir uma farda e passou a integrar a equipe de guarda-costas.
Claro que ela jamais havia sido treinada ou visto um [fuzil] Kalashnikov. Algumas tinham treinamento militar, mas todas, para chegar a essa "unidade especial", tinham que dormir com Gaddafi.
Rico em petróleo, a Líbia atraiu muitas empresas estrangeiras a fazer grandes negócios no país, incluindo várias brasileiras. Também havia sexo nas transações comerciais de Gaddafi?
Suponho que sim. Não tenho provas. Um funcionário francês me disse que tudo ia mais rápido se as empresas providenciassem mulheres. Mas infelizmente isso é comum no mundo dos negócios, não apenas na Líbia.
Com tantas famílias atingidas durante 42 anos, como a sra. explica não ter havido uma revolta contra os crimes sexuais de Gaddafi?
Trata-se de uma das sociedades mais conservadoras que você pode imaginar. Estupro é o crime dos crimes e um tabu cultural. Muitos homens que encontrei me disseram que seria a pior das ofensas à família se uma das mulheres fosse estuprada.
Em vez de sentir pena das mulheres, estavam preocupados com a honra dos irmãos ou pais. É um tabu tão pesado e profundo que é impossível alguém falar sobre o assunto. Durante a revolução houve muitos estupros.
As mulheres que foram presas eram sistematicamente violentadas. E nenhuma contou o que passou nem mesmo para a mãe ou o pai. Muitas dessas mulheres foram rejeitadas por suas famílias e tiveram que se mudar para outros países.
Eu perguntei ao pai da Soraya por que ele não havia ido à polícia e logo percebi que era uma pergunta estúpida. "Polícia? Era como se queixar sobre o demônio na porta do inferno", disse-me ele.
Não havia a quem denunciar, sem falar no medo e da vergonha dos vizinhos, que alguém falasse alguma coisa. Não havia justiça. E quem ousasse ir contra a vontade do ditador era desmoralizado, preso ou morto.
Até havia conversas sobre prisioneiros políticos, mas falar de sexo, virgindade, casamento, era impossível. Isso foi o que mais me chocou: o peso do silêncio.
MARCELO NINIODE JERUSALÉM
 

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